29.11.06

Ponto de Fuga

Os momentos suspendem-se por um segundo e a festa como que flutua no ar enquanto a palavra amor se anuncia de forma distante e perpétua. Existe uma chama que insiste em arder quebrando a eficácia das horas frias. A tristeza foge receosa e com ares de quem vai triste. Nem uma lágrima cai. O passado foi sublinhado por momentos dignos da memória e por olhares que foram fazendo a história. Foram desperdiçados momentos em que a altura era solene para fazer do fogo uma lembrança das horas apesar da cor púrpura ter dito sempre presente. Mas as lágrimas passadas vão construindo o querer e uma súbita esperança invade o ninho. É preciso bater várias vezes com a cabeça na parede imóvel até compreender onde está a porta de serviço. É necessário acrescentar aos sentidos a memória até conhecer bem a saída. Não adianta procurar a poesia numa cabeça partida. Os passos só se tornam precisos depois de conhecerem o caminho e todas as estradas vão ter ao mesmo destino incerto. Existe a certeza do mar a bater na rocha e dos movimentos que acabarão por cessar. Existe o que faz da razão uma agonia do existir, como se a pedra ou a água pudessem de facto ter um significado e o luar não fosse apenas uma circunstância. Estamos aqui, existimos e disso temos consciência. Será essa talvez uma forma eficaz de nos sentirmos culpados e sublimes. Na raiz da consciência subsiste a palavra. Uma cruz que carregamos mesmo quando tratamos de saudar o absoluto, o belo e a sua plenitude. Fomos construindo a sabedoria e a loucura, festejando a fraqueza anunciada pelo vigia desta torre de babel. A discordância emergiu de um mar revoltado pela discrepância entre o que é visto, sentido ou anunciado. Ao abrir a boca, uma traição oral subtilmente vingou desvirtuando o que deveria ser interior e imaculado. A vertigem do fogo fez o resto transformando em fogueira o que era apenas combustão subentendida. Apenas por isso enumeramos agora os momentos e nos queixamos do frio.

Foi com dureza que chegou a sede. Os passos enfrentam uma travessia longa, pontuada pelo sentido oblíquo com que cai a chuva e o seu peso. Algo aparece com a mesma nitidez com que as gaivotas se despedem do mar no momento da tempestade. Se o céu chorasse de outra forma as gotas cairiam salgadas e seriam sempre azuis e não tão cinzentas como esta estranha missiva de um recordar. Subindo uma escada sem fim, o corpo acompanha uma frieza que flutua verticalmente e magoa no fundo dos ossos. É a realidade que se insurge de encontro à pele e à qual chamamos fragilmente de frio. De resto, a palavra corresponde exactamente à sua ideia, só encontra rival na sua versão mais sólida – o gelo. No fundo, este último será mais uma consequência do que propriamente um rival. Não há sinal do vento, há dias que o não sinto, será talvez distracção ou então mais uma consequência. Existe, no entanto, a beleza que se anuncia para lá das amplas janelas, um mundo verde onde os olhos pousam livremente e ainda enxutos. Por vezes, a mão pretende alcançar o que a vidraça parece prometer mas é sempre longe para o curto alcance de um membro mortal, finito. Os olhos, no entanto, soltam-se livres fixando no horizonte os pontos de fuga que a paisagem permite e a razão procura.

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